segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Ladrão que rouba ladrão...


Tem cem anos de perdão, segundo o adágio popular. Uma montagem em vídeo, com apelo sensacionalista, que circula no Youtube, traz um fato que, embora revestido de perfil hilariante, aproxima-se e em muito da realidade. Tanto é que o internauta desavisado ficará impressionado com as cenas que perambulam em torno de alguns tipos penais contra o patrimônio. Segundo o relato, determinada pessoa, conhecida no meio marginal como Bagulhinho, fazendo uso de arma de fogo, intimidou o condutor e roubou seu veículo. Em seguida, dando continuidade a um plano previamente estabelecido, estacionou rapidamente o auto defronte a uma farmácia e, em seu interior, fazendo uso da mesma arma, ameaçou os clientes e o proprietário, que foi obrigado a lhe entregar o dinheiro existente no caixa. Ocorre que, quando se dirigia para o veículo, até mesmo estacionado de forma irregular para dar apoio à sua operação, percebeu que outra pessoa estava em seu interior e o acionou atritando os pneus, o que provocou a leve poeira de adeus.
Com o saco plástico nas mãos contendo o dinheiro, sem meios para fugir, visivelmente frustrado, olhou de um lado para o outro e, num repente, um punguista arrebatou de suas mãos o saco plástico contendo o produto do roubo e, também, rapidamente, saiu em desabalada carreira. Nesta hora a casa realmente caiu. Humilhado. Sentiu-se humilhado. Um sentimento de revolta tomou conta do agora vítima por duas vezes, sensação amarga e impotente que nunca tinha experimentado. Criou coragem, como o Minotauro mortalmente ferido pela espada de Teseu, procurou pela delegacia de polícia. Ali, em alta voz e em bom som, vestiu a toga da cidadania e narrou sua desventura à autoridade policial, deixando-a embasbacada. Mas, como você foi vítima? Você foi o autor de dois roubos, que agora mesmo veio a confessar, concluiu o Delegado de Polícia.
Não, doutor, asseverou ele, o mundo do crime tem suas regras, que não são escritas como as do mundo onde se leva a vida certa, mas são éticas. Quer dizer, passa de boca em boca e quem convive com a delinquência tem que respeitar. Assim, pela lei do crime, o carro é meu porque roubei e o dinheiro também é meu, pois representa o fruto de meu trabalho. Além do que, devo confessar agora, pois é mais um trabalho, também roubei a arma para a prática dos crimes, para cuidar da minha própria segurança. Vai que a vítima reage... Se nenhuma providência for tomada, a malandragem vai tomar conta da cidade e aí não prevalecerá mais a lei da bandidagem, que é aquela que nós, operadores da área, obedecemos e se torna importante para o convívio harmônico. Deixo de antemão avisado que vou investigar para descobrir os responsáveis pelo furto do meu carro e do meu dinheiro e, certamente, serão penalizados pelo código da rua.
O fato relatado, apesar de circular na órbita da ficção, traduz uma realidade que não pode ser divorciada da sociedade em que vivemos. Há, pela doutrina exposta pelo assaltante-vítima, a lei dos homens, que é aquela escrita e que capitula crimes e sanções que podem ser transgredidos porque transformam em números e tempo uma eventual reprimenda, quando não uma ligeira prestação de serviço à comunidade. Já pela lei do marginal, o certo fica errado e o errado fica certo. Sem deslize.
Os outros dois furtadores? Fugiram na posse dos bens subtraídos e devem ter se divertido muito, com gargalhadas incontidas, ao narrar aos colegas como a vítima foi inocente em deixar o carro aberto e transportar considerável importância em dinheiro numa sacola de plástico. Além do que, receberam cem anos de perdão. Juridicamente, no entanto, responderão pelas subtrações e figurarão como vítimas os proprietários do auto e do dinheiro. O roubador, por querer ser honesto, foi preso em flagrante delito pela prática dos crimes confessados. Errou porque quis aplicar a lei certa.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, doutor e pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp.

Eudes Quintino de Oliveira Junior
Pós-Doutor em Ciências da Saúde. Mestre em Direito Público. Professor de Processo Penal, biodireito e bioética. Promotor de Justiça aposentado/SP. Advogado. Reitor do Centro Universitário do Norte Paulista.

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