segunda-feira, 1 de junho de 2015

Quanto pode demorar o bom senso

Fumar em avião: um privilégio dos tabagistas no século XX.




Quanto pode demorar o bom senso
Afivele os cintos. Risque o isqueiro e leve a chama ao cigarro. Está tudo bem. Até o ano de 1978 fumava-se não em algumas poltronas, mas em rigorosamente todos os lugares dos aviões comerciais brasileiros. Quem quisesse podia acender o cigarrinho para afastar o horror irracional de estar a bordo de uma cápsula precária singrando os ares durante seu voo. O companheiro de viagem podia ser uma criança, uma idosa com bronquite, qualquer um. Era um direito pitar até o último milímetro o cigarrinho.
Quanto pode demorar o bom senso
Lembrei disso ao arrumar umas gavetas e encontrar o artigo “Cigarro e egoísmo”. A colunagem entrega a idade do artigo. Era 20 de julho de 1977 e o Jornal do Brasil encampava uma briga que hoje parece sem qualquer cabimento: queria-se que apenas algumas poltronas fossem reservadas aos fumantes, não o voo inteiro. O artigo traz o dado de que 65% dos adultos em voo não fumavam (não é mencionada a fonte). O texto também tratava fumantes com um pejorativo “viciados”.
Argumentos não faltavam para restringir o fumo nas cabines de voo. É estimada entre 10% e 20% a umidade relativa do ar pressurizado nos jatos. A fumaça não se dissipa com tanta facilidade e irrita olhos já sensibilizados pelo pouco H2O que circula no ambiente. Qualquer substância consumida no voo tem um efeito maior (já experimentou beber a bordo?). A fumaça se espalhava até as cabines de controle do avião, irritando a vista dos pilotos. O mais grave: era creditada à bituca de cigarro acesa esquecida no cesto de papel do banheiro do avião alguns desastres aéreos. Um específico matou 122 pessoas em um 707 da Varig no aeroporto de Orly em 1973.
Os fumantes resistiram muito à campanha por restringir o fumo nos aviões. Um movimento vagamente parecido ao observado com a instituição da Lei Antifumo de 2009 — e com a diferença de ter sido um dos primeiros movimentos de restrição. O direito de fumar em aviões, empresas, escolas e hospitais foi defendido com unhas e dentes. O Instituto do Fumo norte-americano tratava os militantes da restrição ao fumo em voo como “fanáticos”, defendendo que era “desrespeitoso” tratar o fumante como “cidadão de segunda classe” por querer proibir que fumasse apenas em parte dos aviões. Mas as leis vieram. Em 1990, 23 países já proibiam completamente o fumo em voos. No final da década, nos EUA — que não tinha lei para isso mas contava com regulações das próprias companhias aéreas — 90% dos voos estavam despoluídos.
As inovações na aviação sempre vieram depois de grandes desastres. Detectores de fumaça tornaram-se itens obrigatórios imediatamente mas demorariam, ainda, mais cinco anos do desastre da Varig em Orly para que se adotasse uma restrição de assentos onde era permitido fumar. Em 1978, 50% da tripulação podia fumar em voos domésticos e 40% em voos internacionais. Só em fins de outubro de 1998 a restrição foi total. Decisão do juiz gaúcho Guilherme Pinho Machado seguiu o presidente Fernando Henrique na legislação de 1996 que proibia o fumo em ambientes fechados sem fumódromo. O avião, afinal, não poderia ter fumódromo. Em reportagem de novembro daquele ano a revista Veja acenava com a possibilidade de que a TAM oferecesse um fumódromo. Isso nunca aconteceu, que se saiba. Não me lembro se o gritedo foi muito, mas a mesma reportagem cita um belga que passou 12 horas circulando com um cigarro apagado entre Bruxelas e São Paulo, surpreendido pela nova lei.
A briga contra o cigarro sempre encontrou uma resistência de guerrilha dos fumantes. Como esquecer do meu início de carreira com um disputado fumódromo na Zero Hora. Old School, o colunista Paulo Sant’Ana não considerava a lei aplicável a ele e podia ser visto circulando pela redação com um crivo de filtro branco aceso. Trombava nas pessoas com um precário senso de espaço. Sua boca parecia moldada para receber o cigarro. Por se considerar do mesmo nível hierárquico de Sant’Ana, Wianey Carlet também fumava na sua máquina. Ninguém se atrevia a dizer nada. Deixei de frequentar a redação da avenida Ipiranga muito antes da lei paulista de 2009 influenciar decisões semelhantes em todo o país e todos os ambientes fechados ficarem livres de tabaco.
O assunto tem uma importância muito especial para mim porque meu pai foi um dos maiores militantes da proibição do fumo em ambientes fechados — especialmente voos, pela lógica, já que foi piloto. Aposentou-se em 1986 sem ver a restrição total que só viria 12 anos depois. Na frustração de não ter conseguido mais que uma proibição parcial dentro dos voos, descontava em qualquer um que acendesse um cigarro na sua frente — em todos os ambientes, mas especialmente restaurantes. “Ah, começou a poluição”, era sua catchphrase. Como estávamos na maioria das vezes em Porto Alegre nestas ocasiões, isso nunca era recebido com urbanidade. Houve uma vez em que o fumante partiu para cima do pai aos pontapés.
Mas, quando era comandante, guardou ao menos uma grande vitória contra o tabagismo. Conta que um argentino acendera um charuto antes mesmo da decolagem (o artefato nunca foi permitido, tampouco o cachimbo, pela quantidade de fumaça que produz). Instado a apagar seu cubano pela equipe de comissários, recusou-se terminantemente. Fumaria até o final. O caso foi levado ao comandante, autoridade máxima no voo, que foi ameaçadoramente até a poltrona do argentino. A partir deste momento o relato tem duas versões. Na primeira, papai teria arrancado o charuto violentamente direto da boca do fumante e apagado no cinzeiro da poltrona. A versão que prefiro: ele teria ameaçado disparar o extintor de incêndio do avião na boca do fumante se não o apagasse.
O artigo que encontrei me serviu como uma recordação do quanto pode demorar que o bom senso seja aplicado, mesmo quando muitas vidas dependem dele.
Fonte: Medium. Com

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