quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A mídia que pune na hora do almoço

A "sorte" diária de tantos Josés.


José era um jovem rapaz negro, pobre e simples, morador do subúrbio de uma grande metrópole. Desde cedo, viu na pelé (literalmente) a sentença condenatória por não ter nascido branco: os olhares nas ruas e em qualquer canto noticiavam a prática de seus crimes diários. Trabalhador e gente humilde, estudou pouco. Faltava-lhe, decerto, a palavra oportunidade.
Sua mãe sempre lhe ensinou a andar no “prumo”, porque a “puliça”- ah, a puliça - não tinha tempo pra constatar se ele era o correto da história. José, coitado, só queria ser alguém na vida. Porém, a vida deveria ter um plus: ela teria que ser digna. E assim estava ocorrendo.
Procurou as oportunidades que as condições não haviam lhe propiciado e, aos poucos, estava prestes a concluir sua graduação, fato este conquistado aos trancos e barrancos. Ah, o sonho de seus pais estava quase se concluindo! Quem diria que José (preto, pobre, da favela) alcançaria esse destino. Mas coitado de José... Sua graduação não era nada!
Era uma noite fria de maio do ano passado. José estava com alguns amigos e, de repente, é surpreendido por dois policiais que estavam fazendo ronda nas “áreas”. “Todo mundo pra parede!”. Obviamente, cumprir ordens era rotina. José estava tranquilo e não tinha o que temer. Mas um amigo seu estava com uma pequena quantidade de drogas dentro da bermuda. E agora, José?! Todo mundo pra delegacia!
José, coitado, foi preso em flagrante em conjunto com seus amigos. “É tráfico, jovem! Por que não foi estudar, ao invés de tá por aí fumando?”, indagou um policial no percurso. “Agora vão ficar preso, pra aprender a respeitar a lei!”. E que lei... Preso em flagrante, o juiz logo depois já converteu em preventiva. Eita, José! Você, sem dúvidas, era um perigo à ordem pública e não poderia ter sua liberdade, sob pena de cometer outros crimes. “Tráfico”, também, é um crime gravíssimo e merece sofrer a reprimenda penal.
Os pais de José, neste momento, já estavam desgostosos da vida. Imaginem aí que o filho deles e os amigos foram parar no noticiário de um jornal local cuja manchete alardeava: “Traficantes são presos com grande quantidade de drogas”. Mas não bastava isso. A foto de todos estava lá, estampada aos quatro cantos, em conjunto com objetos que Deus sabe de onde surgiram. Deus sabe, mas José, não.
A mídia conseguiu acabar com todos ali. José deu a falta de sorte de não ser branco e rico. Cumpridos estes requisitos, sequer estaria sendo conduzido à delegacia. Era preto, coitado! E o repórter escandalizava: “onde essa juventude vai parar, meu Deus?!”. José queria perguntar onde essa mídia iria parar, mas ele não tinha direitos. Fique em silêncio, José! Fique em silêncio, como sempre você deveria ter ficado. E, por favor, da próxima vez não saia de casa!
José foi solto e responderá o processo em liberdade. Perdeu o emprego, era apontado nas ruas e teve que trancar a faculdade, porque nada mais fazia sentido. José, em pouco tempo, ficou conhecido como o “traficantezinho” do bairro. Ele queria ficar conhecido, mas por outros motivos.
A mídia cumpriu o seu papel de interesse público: informar onde é que está o mal da sociedade. Informou, tripudiou, promoveu escárnio público e logo depois, no programa televisivo que José apareceu no outro dia em horário de almoço (e que almoço!), deu-se início a uma propaganda de produtos de beleza. Porque vale muito a pena limpar a pelé com aquele creme. Enquanto isso, José sonha com a limpeza dessa sociedade hipócrita e seletiva.
José foi condenado em primeiro grau por crime de associação ao tráfico. Defensoria Pública irá recorrer. Mas, nesse momento, José já não era mais o centro das atenções. A mídia encontrou João, que acabou de furtar produtos em um supermercado com mais dois jovens - “quadrilha fortemente armada rouba supermercado e deixa vários reféns”. Mas João é protagonista de outra história. José, por enquanto, ainda tenta entender aquela noite de maio. Ainda tenta entender...

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