terça-feira, 23 de março de 2010

Crônica do dia - 23-03-2010

CRÔNICAS DE FÁBIO DE OLIVEIRA RIBEIRO

A VIDA COMO ELA PODERIA SER

Ontem de madrugada, enquanto observava despretensiosamente o trânsito escasso na Avenida da Consolação da mesa do Riviera, após tantos anos de mistério, entre um chope e outro, o Antonio Carlos revelou-me como o Alfredo conseguiu enriquecer em Brasília, pouco tempo depois de ser admitido como garçom no Palácio da Alvorada.

A história do Alfredo sempre me intrigou. Em janeiro ou fevereiro de 1969, não lembro bem ao certo, após tentar em vão convencê-lo a não partir da cidade, eu levei-o em meu Chevrolet 1948 ao terminal rodoviário da Luz. Após a trágica morte de seus pais, ele resolveu partir para tentar a sorte em Brasília e ninguém foi capaz de convencê-lo do contrário. Como um bom descendente de italianos, Alfredo não negava a raça. Herdara do pai o físico admirável e um desejo de aventurar-se na vida. Da mãe, além dos olhos castanhos amendoados e a covinha no queixo, ele herdou a cabeça mais dura que conheci até hoje.

Sua bagagem ínfima, pode-se dizer mesmo que era surrealista. Consistia de uma malinha surrada, contendo não mais de três camisas, duas calças, duas cuecas, três pares de meias, alguns lenços e o dinheiro que ele apurou com a venda da casa e dos móveis da família.

Único herdeiro, contando com vinte e seis anos, ele não teve dificuldade alguma em transformar sua herança no conteúdo do fundo falso daquela mala. Após despedir-me e rogar-lhe que tivesse cuidado e me escrevesse quando pudesse, senti um aperto no coração ao vê-lo caminhar rapidamente para o ônibus, e entrar nele sem olhar para trás. Senti que nunca mais o veria. Sua brancura ao despedir-se e sua rispidez ao dar-me as costas sem voltar-se para um derradeiro adeus, deu-me a impressão que ele marchava para a guerra ou algo parecido e que nunca mais voltaria a vê-lo. De fato nunca mais o encontrei, porém, por motivos bem diferentes daqueles que imaginei quando entrei no carro e voltei para o Brás.

Como se estivesse exibindo um Corvette ou outro carrão qualquer, dirigi meu automóvel para casa. Vagarosamente! Enquanto não chegava, ia imaginando como seria a vida do Alfredo na terra dos generais. Educado, porém, explosivo, Alfredo não me parecia alguém fadado ao sucesso no meio de tantas estrelas, ainda mais entre aquelas que brilhavam em Brasília naquela época de terrorismo e coisa e tal. Ele não era um homem submisso, portanto, certamente não agradaria os militares, sempre acostumados mais a mandar do que a obedecer um civil. Além do mais, mesmo que levasse consigo uma soma razoável, ele não tinha a teatralidade, a maleabilidade e o pragmatismo dos homens de negócios, portanto, não levava jeito para as transações nem sempre lícitas que grassavam nos subterrâneos da sociedade brasiliense durante o regime militar. Além do mais, ele não sabia fazer outra coisa senão servir bem uma mesa.

Garçom desde a adolescência, mais por gosto da vida noturna do que por necessidade ou profissão, Alfredo certamente torraria sua herança em alguns anos e retornaria a São Paulo na mais abjeta penúria. Isto, que eu tinha como certo, era o que mais atormentava minha alma enquanto dirigia. E como eu estava errado! Para surpresa de todos, seis anos depois, ele voltou a São Paulo e passou a figurar nas colunas do Estado de São Paulo como um exemplo de sucesso.

Tornara-se um magnata do mercado imobiliário brasiliense. No Brás, ele virou o assunto da moda. Uns, diziam que ele acendia charutos importados com notas de dez dólares; outros, que ele era amigo pessoal do Presidente; outros, ainda, que na verdade era ele quem distribuía os favores presidenciais aos potentados paulistanos.

Como conheci bem o Alfredo, nunca acreditei nestas estórias, apesar da mágoa que senti pelo fato dele nunca mais, nunca mais mesmo, ter pisado no Brás ou procurado os amigos de outrora, a não ser Antonio Carlos, que contratou como seu secretário particular quando retornou da capital. Uma coisa era certa, se seu passado era um mistério para uns, para outros, os que o conheceram intimamente como eu, sua nova condição sempre foi considerada uma incógnita.

Mas, como dizia, ontem de madrugada, o Antonio Carlos, que aposentou-se após o passamento do seu patrão e rapidamente retomou as velhas amizades para não morrer de tédio ou solidão, revelou-me numa mesa do Riviera o grande mistério do sucesso de Alfredo. E que mistério?! Sua história de sucesso não passava de um feliz acaso.

Três meses após chegar a Brasília, ele conseguiu um emprego como garçom no Palácio da Alvorada. Pelas suas qualidades genuinamente latinas, durante um jantar não oficial, o Alfredo acabou caindo nas graças da esposa de um militar que não ouso revelar o nome, mas que ocupava um cargo importantíssimo no Ministério do Exército e que freqüentava com a mulher a residência oficial do Presidente, seu amigo pessoal de longa data. O dito militar, além de corno, era desonesto até o último fio de cabelo e inteligente o bastante para saber que como a vida, o regime não duraria para sempre. Por isto se arrumava como podia. Na verdade, o Coronel em questão fazia parte de um esquema de corrupção através do qual verbas públicas administradas pelo Ministério em que trabalhava eram transformadas em imóveis.

A idéia toda era muito simples. Com a cumplicidade do subordinado, o Ministro autorizava fossem contabilizados gastos orçamentários com materiais que nunca eram entregues ao Ministério, mas que eram pontualmente pagos aos fornecedores, empresas fantasmas das quais participavam as esposas de ambos. De posse de procurações de suas mulheres, os malandros movimentavam o dinheiro, comprando imóveis na cidade sempre em nome delas. Segundo Antonio, o Alfredo veio a saber e lhe revelou secretamente que o esquema todo não era oficial, ou seja, não fazia parte da corrupção engendrada desde o Palácio da Alvorada, do Planalto e dos principais Ministérios. Na verdade, aqueles pequenos desvios orçamentários não eram tão lucrativos assim.

Além disto, o Ministro do Exército não passava de um nacionalista desonesto, mas sempre um nacionalista, que nunca arriscaria sua honra ou os altos desígnios da nação participando de negociatas mais elaboradas ou rentáveis. No fundo, os dois militares em questão eram tão amadores, que supunham enganar a todos o tempo todo, quando na verdade tinham apenas a cumplicidade velada do Presidente, que nunca puniria ou exigiria algo de um amigo por tão pouco. Isto acontecia muito em Brasília naquela época.

Pois bem! Em janeiro de 1971, a esposa do Ministro do Exército faleceu. Como ele não tinha filhos e não queria ver todos os imóveis em seu nome, deliberou que os mesmos fossem transferidos para o nome da esposa do subordinado até serem vendidos, quando então pegaria sua parte em dinheiro. As providências foram prontamente ultimadas no Cartório, com datas retroativas e tudo o mais, a fim de validarem-se as transferências.

Porém, em maio daquele mesmo ano, após todos os imóveis já estarem em nome da amante de Alfredo, o Ministro, seu fiel subordinado e os dois filhos deste, vieram a falecer num trágico acidente de avião a caminho do Rio de Janeiro. Resultado, o Alfredo, que nem sabia de nada até então, casou-se com a viúva do militar pelo regime da comunhão universal de bens, e, após a morte da esposa, que ocorreu três anos e um dia depois do enlace, acabou herdando todos os imóveis.

O casamento o introduzira na sociedade brasiliense, onde ele pode revelar suas melhores qualidades, chegando até o honroso posto de adido diplomático nos EUA por um ano. Segundo meu companheiro de noitada, isto aconteceu mais ou menos em 1973. Neste posto, por ser honesto, Alfredo não angariou muitas amizades ou dólares.

Porém, como soube investir bem seu salário em ações, acabou retornando ao Brasil com uma soma razoável, a qual investiu em imóveis em Brasília, ramo que explorou até ser vítima de um câncer de próstata há uns dois anos.

Eu decidi relatar ao leitor a história que o Antonio Carlos me revelou ontem por uma razão muito simples. Ela é uma prova de como a vida é mesmo tortuosa. De fato, não é preciso muito trabalho ou desonestidade para alguém enriquecer neste país, tão abençoado, mas tão abençoado, que aqui, às vezes, não é o próprio desonesto que acaba desfrutando do dinheiro que teve o trabalho de surrupiar dos cofres públicos.

(autor: Fábio de Oliveira Ribeiro)

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