“Um
homem queixou-se à sogra, porque sua mulher, de 12 anos, nunca estava em
casa quando ele chegava. Passava as tardes brincando de boneca com a
filha da vizinha, deixava a roupa sem lavar, a cozinha suja…”.
Reportagem destrincha uma realidade pouco divulgada no Brasil: o
casamento infantil
Nunca
tinha ouvido falar em casamento infantil no Brasil até 2013. Fiquei
estarrecida. Como podia ser verdade? Supunha que fosse uma realidade da
África Subsaariana ou do Sul da Ásia, onde fome ou tradições e ritos se
impõem. Quem deu a informação foi a assistente social Neilza Buarque
Costa, da ong
Visão Mundial, ao debater o documentário Girl Rising
(Richard Robbins), segundo o qual 66 milhões de meninas estão fora da
escola, em todo o Planeta, e uma das razões é o matrimônio precoce. Mas
eu imaginei: se tem aqui, deve ser uma situação isolada num rincão
profundo.
Por dois anos não me saiu da cabeça um caso da Paraíba,
que Neilza contou à plateia: um homem queixou-se à sogra, porque sua
mulher, de 12 anos, nunca estava em casa quando ele chegava. Passava as
tardes brincando de boneca com a filha da vizinha, deixava a roupa sem
lavar, a cozinha suja… Comecei a pesquisar. Tive notícias de tantas
adolescentes se submetendo a um marido violento, com dois ou três filhos
nos braços. E de homens – alguns com mais de 40 anos – que adoram casar
com menininhas firmes de carne e a quem eles podem moldar o caráter.
O
tema passou a me doer. A reportagem “Noivas Meninas” está nas bancas,
na edição de janeiro, de CLAUDIA – um fôlego que juntou o fotógrafo
Victor Moriyama, a estagiária Gabriela Abreu e eu. A primeira
descoberta: não se trata apenas de casos em um grotão perdido. O
casamento infantil ocorre na maior economia brasileira – a cidade de São
Paulo -, na região metropolitana de Curitiba, no Tocantins, em Minas,
nas capitais do Pará e Maranhão… Difícil descobrir onde não tem. Hoje,
554 mil garotas de 10 a 17 anos são casadas, calcula um estudo do
Instituto Promundo, com base no IBGE, publicado em setembro passado.
Como a lei considera crime o sexo com menores de 14, mesmo que
consensual, a maioria das uniões é informal. Ainda assim, em 2013, Campo
Grande casou no cartório o maior número de brasileirinhas. Partimos
atrás de uma amostra nacional. O texto começa assim:
“Catingueiras
magricelas e peladas, sol forte, uma cabrita, um bode e algumas
galinhas são quase tudo que Ivonete Santos da Silva, 14 anos, vê ao
longo do dia e por semanas a fio. Mãe de Rayslani, 1 ano, ela dorme
cedo. A casa de taipa onde vive, no sítio Lagoa Nova, em Inhapi (AL), a
289 quilômetros da capital, Maceió, não tem lâmpadas nem TV. Ivonete
juntou-se aos 12 anos com Sislânio Silvério, 21, seu primo. Deixou a
escola sem aprender a unir as letras: “Era aperreio demais, tudo
acontecia na hora do almoço, tinha que fazer comida, me arrumar, sair
para estudar”. Não se arrepende. “Só quando estou bem estressada,
limpando a casa, e a menina acorda chorando, penso: ‘Meu Deus, o que eu
fiz?’ ” Ainda assim, considera que está melhor do que no tempo em que
vivia na casa materna. “Um dia, saí calada, o povo estava todo lá pra dentro. Fui embora
com Sislânio.” Ele trabalha na roça. Quando tem roça. Há cinco anos, o
sertão enfrenta uma seca bruta; a terra está tão dura que é impossível
plantar. Na única panela, no fogãozinho de barro, há feijão. Ivonete não
faz planos, não pronuncia desejos – pelo menos a estranhos que invadem
sua rotina -, mas responde como se sente: “Não sei direito. Sou um pouco
mulher, pequena demais, meio criança também”.
Quando fecha os olhos, do
que se lembra? “De mim desenhando pé de maçã, árvore de morango.” Mesmo
que morangos amadureçam a não mais que 30 centímetros do chão, era esse
seu deleite na sala de aula. Queria ser professora, acha que não dá
mais tempo. “Espero que minha filha case bem tarde, só com 17 anos, e
não engane a escola para aprender tudo bem direitinho”, diz.
Depois
de Inhapi, percorremos Canapi (AL), Colombo (PR), e uma das maiores
favelas do país, Heliópolis – não haveria nenhuma dificuldade de
encontrar meninas casadas nessa comunidade paulistana. Enquanto Victor
fotografava, ali, Thainá Darri, 17 anos, casada desde os 15, dezenas de
meninas iam se juntando para saber o que fazíamos. Dei a pauta e elas
quiseram saber porque tanta curiosidade sobre algo tão comum. Várias,
entre 14 e 16, carregavam um filho.
Thainá é um caso diferente,
tem uma consciência política clara, é feminista, está no conselho do
meio ambiente da região e é a única das entrevistadas que concluiu o
segundo grau. Acabava de receber o resultado do laboratório – positivo
para gravidez – e decidiu adiar os planos de fazer uma faculdade. No seu
discurso, me chamou a atenção a explicação para seu casamento aos 15:
queria privacidade com o namorado e, de certa forma, proteção. “Aqui, as
meninas se jogam no funk, bebem e nem sabe quem é o pai do filho delas.
O casamento me poupou disso.”
Mãe de Michel Júnior, casada em
Canapi desde os 14, Ana Clara dos Santos, 16, fugiu de casa para ficar
com seu amado, Jaílson de Oliveira, na época com 16. Duro para ambos é
deixar o bebê aos cuidados da mãe de Ana, porque eles não têm condição
financeira de criá-lo. A alagoana Jamille Henrique ganhou, aos 14, uma
aliança e se viu livre da lida pesada com seus oito irmãos, além do jugo
do pai alcoólatra. Embora tenha em Marcelo um parceiro divertido, e com
quem gosta “de brincar e de fazer sexo”, seu semblante é triste e sua
concepção sobre a vida de mulher, medonha: “Todas apanham. Não acho bom,
mas é o que acontece”.
Monique Barbosa, aos 15,
parece uma madonna, de Michelangelo, com sua Maria Clara sempre a
tiracolo. Essa Pietá de Colombo (PR), queria ser policial, mas desistiu,
está fora da escola, cansada dos afazeres domésticos e do ciúme do
marido. Na mesma cidade, Joyce Pinheiro, mãe de gêmeas aos 15, teme as
estrias e que o marido a troque por uma menina mais magrinha. Ela conta:
“Das 20 colegas que estudavam comigo, 16 estão casadas ou são mães
solteiras”. Ouvimos vários especialistas para entender o fenômeno.
Saio
das reportagens carregando as personagens em mim. Demoro a tirá-las do
pensamento. Ivonete, a sertaneja do sítio sem luz, me abraçou longamente
quando nos despedimos. Prometi enviar uma revista para alguém ler para
ela. E também uma fotografia ampliada. Essa menina-mãe nunca teve uma
foto sua. De todas as personagens, foi a que mais interagiu com a
câmera. Tem uma força no olhar inexplicável. Encarava as lentes de
Victor com muita naturalidade e firmeza. Fico imaginando como Ivonete
fará para desamarrar o nó, desbancar seu destino e vencer as agruras
todas que enfrenta desde o nascimento. Algo me diz que ela vai
conseguir.
Fonte: Pragmatismo Político